domingo, 31 de maio de 2015

1995, meu Fla x Flu inesquecível

Há dias inesquecíveis em nossas vidas. Episódios marcantes, nem sempre bons ou ruins, mas impactantes, que deixam registros indeléveis em nossas memórias, lembranças que compartilhamos ou guardamos conosco, mas que sempre estarão ali, prontas para serem revividas e contadas.

A decisão do campeonato carioca de 1995, a 25 de junho, um domingo chuvoso no Rio de Janeiro, foi um desses momentos inolvidáveis. Para mim, tricolor, e para o outro lado também, tenho certeza.

Às vésperas dos grandes jogos, a proximidade do Maracanã, confesso, me dava um frio na barriga. O Fla-Flu, por tudo o que sempre envolveu, pelas lendas e pelos fatos, sempre foi o meu confronto preferido, o de maior expectativa e tensão. Os primeiros, acompanhado de meu pai, a quem devo as melhores histórias sobre o clássico mais imponente do Brasil, e os últimos, já sem ele, enriqueceram o meu currículo de torcedor do Fluminense Football Club.

A final de 1995, contudo, não foi apenas mais um Fla-Flu, foi o maior da era moderna, o mais sublime que vivi.

Morava na Serra Fluminense e a expectativa que antecedia a partida final do campeonato não era parecida com a da capital. No Rio, onde vivi grande parte da experiência como torcedor tricolor, os dias que precediam um grande jogo eram de imensa expectativa. O assunto, em qualquer esquina, inevitavelmente remetia ao clássico e isso acrescia em emoção à partida. Mas na Serra, minha família, que é toda tricolor, não deixou morrer esse clima. Lembro-me, inclusive, de que no sábado, véspera da decisão, fomos todos, meu pai, minha mãe, meus dois irmãos, minha cunhada e outros três amigos, jantar num restaurante de Itaipava, distrito de Petrópolis, todos uniformizados com a camisa do Fluminense. Após o jantar, despedimo-nos de meus pais e os mais jovens fomos a uma casa noturna na região. Diante da quantidade de tricolores que pretendiam acessar o recinto, aos quais juntaram-se outros dois amigos, o dono do estabelecimento proibiu a nossa entrada justificando-se pelo risco de que “poderia haver confusão”.

Isso não impediu a nossa festa. Do lado de fora, por mais de uma hora cantamos o hino tricolor, gritamos o nome de “Renato Gaúcho” e saudamos os clientes com bandeiras tricolores. A festa estava só começando e antecipava o que ainda estava por vir.

Dia de jogo, dia do jogo. Dessa vez, ao contrário de muitas outras desde a minha infância, meu pai foi meu convidado. Ele e meus dois irmãos. Descemos a Serra com a antecedência necessária e chegamos ao Estádio três horas antes do horário previsto. O frio na barriga foi o mesmo, a expectativa de um jogaço também. Nas cercanias, vi a torcida chegando, muito mais rubro-negros que tricolores, diferença compensada pela efusividade destes últimos. O clima era propenso à vitória, o cheiro no ar dizia isso, os rostos tricolores era mais alegres e confiantes e a expectativa era de título sobre o maior rival. Acessamos o estádio como sempre – não havia nada mais espetacular do que subir as rampas do Maracanã e galgar os túneis de acesso ao anel da arquibancada, de onde se mostrava, diante de nós, a passo e passo, a torcida rival, do outro lado, já se posicionando para o jogo. Paramos à saída do túnel. Observei por um instante o gramado e o formigueiro humano que se movimentava de um lado a outro procurando acomodar-se.

Subimos alguns degraus e posicionamo-nos na direção da bandeira de córner. Era ali que meu pai costumava ficar e passou a ser, também, meu lugar preferido.

A emoção era evidente. Meu pai acompanhava pelo rádio de pilha as últimas informações e eu observava a torcida chegar. Adorava aquele movimento, aquele preenchimento de espaços vazios que, invariavelmente, me faziam calcular mentalmente o público presente ao estádio. Aos poucos lotou, como era de se esperar. A nossa torcida ocupou por completo o seu espaço, comprimindo-se até pouco antes da linha do meio de campo. Os rubro-negros eram maioria; a geral era praticamente deles, as cadeiras sob as arquibancadas também, mas a torcida tricolor fazia uma grande festa. O clima era de festa, de decisão, mais do que isso, de Fla-Flu!

Um pouco antes de a bola rolar, se não me falha a memória, morteiros disparados do lado flamenguista espocaram sobre a geral provocando intensa correria. Era o fogo amigo, uma vez que aquele espaço popular era todo vermelho e preto. Logo em seguida, os tricolores percebendo o fato, entoaram o grito de “Burros!”.

Retomada a normalidade, as atenções voltaram-se para o campo de jogo e a partida teve início. O Fluminense dominou inteiramente a primeira etapa, tanto que fez dois a zero com Renato e Leonardo e praticamente não deu chances ao Flamengo. Comemoramos muito os gols; como todo tricolor escaldado, no entanto, sabia que as aflições viriam, afinal de contas, nada foi e nunca será fácil para o Tricolor. Neste momento, protegido da chuva pelas marquises das arquibancadas, percebi, ao olhá-la se derramando contra a luz dos refletores já acesos, que, impulsionada pelo vento, molhava o lado de lá muito mais do que o nosso. Aquilo me foi um bom presságio. Alguma coisa me dizia que estávamos protegidos.

O Flamengo precisava do empate para ser campeão e, apesar da diferença de dois gols, sabia que nada estava resolvido. Sou tricolor, conheço meu clube. Veio, então, o intervalo e o imponderável aconteceu. Um tio meu, pé-frio de quatro costados, depois de muito nos procurar, finalmente encontrou. Estava aí a razão para o meu desânimo. Cumprimentamo-nos e ele acomodou-se ao nosso lado. Dali por diante – tive a convicção – o que viesse seria lucro. Meu tio tinha os pés congelados. Nunca, em sua companhia, nem mesmo pela TV, assisti a uma vitória do Flu, tanto é que sempre procurei, de forma dissimulada e a fim de evitar ressentimentos, evitar seus convites ou encontros nos dias de jogos do Fluminense.

E a partir daí, por coincidência ou não, - quem saberia? - tudo começou a mudar. O Fla começou a pressionar e mobilizou a sua torcida. Veio para cima e acuou o Fluminense. O gol era questão de tempo, pensei. E foi. Foram dois, um deles de Romário, que até então não havia marcado contra o Flu. O resultado de empate dava o título ao Flamengo. Para complicar ainda mais as coisas e aplacar as esperanças tricolores, Sorlei e outro jogador flamenguista foram expulsos após o segundo gol rubro-negro e Lira, logo depois, após falta violentíssima, deixando o Fluminense com um jogador a menos.

Sentei. Alcançar uma vitória com um jogador a menos, já na parte final do jogo, apenas por providência divina. Comecei a pedi-la. A festa, nesse momento, era toda do lado de lá. Inflamados, cantavam, sacudindo suas camisas, como se fossem lenços que davam adeus. Davam adeus a parte da torcida tricolor que, desesperançosa, já seguia, triste, o rumo de casa. Meu tio foi nessa leva, mas aí, pensei, já era tarde demais. Nem a sua ausência reverteria aquela situação.

A arquibancada esvaziou-se ao meu redor. Prenúncio de que não seria daquela vez, depois de nove anos, que o campeonato carioca seria novamente conquistado pelo Fluminense. Mas o imponderável resolveu mostrar a sua face mais uma vez, a sua outra face. Já nos acréscimos, enquanto a torcida flamenguista continuava a se despedir de nós, algum tricolor – no momento não identifiquei o jogador – riscou pela direita em zigue-zague, chutou em direção ao gol e a bola entrou. Gol do Flu, gol do título, gol do adeus aos rubro-negros. Êxtase total daqueles que ficaram e acreditaram até o fim. Permanecemos ali abraçados, eu, meu pai e meus irmãos, por alguns instantes, agradecendo aquela bênção magnífica, aquela vitória inexplicável e épica. Cantamos o hino, enaltecemos o “Rei do Rio”, Renato Gaúcho, cujo gol, que depois soube ter sido de barriga, deu ainda mais tempero à galhofa sobre o rival.

Aguardamos a taça, enquanto víamos a torcida adversária esvair-se. Agora era a nossa vez de dizer adeus. Descemos a rampa triunfantes, como há muito tempo não ocorria. Subimos a Serra de volta, sob chuva e neblina, felizes. Ainda comemoramos com uma bela pizza e um bom vinho, para espantar o frio, numa cantina italiana.

Chegamos em casa já noite alta, ainda a tempo de recebermos uma ligação telefônica de meu tio. Meu pai atendeu. Ouvi-o perguntar se ele havia tido tempo de ver o gol antes de sair do estádio. Repetiu em voz alta a sua resposta: - “Estava no táxi”. Olhei para ele, sorri, e disse aliviado: - “Graças a Deus”.



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