segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O excesso e a violência desportiva

A violentíssima cotovelada desferida pelo jogador Betinho em Edson, na vitória do Flu sobre o Paysandu pela Copa do Brasil, por sorte não teve as consequências que se imaginaram ante a contundência da imagem da agressão e, posteriormente, do atleta tricolor sendo levado para o Hospital semiacordado para a avaliação de seu quadro de saúde.

Edson teve a suspeita de ter fraturado o nariz, o que não se confirmou e, boa alma que é, aceitou o pedido de desculpas de seu agressor. Edson está certo, nada de mágoas, nada de rancor. O perdão do tricolor, porém, não deve servir para atenuar eventual punição desportiva ao atleta da equipe paraense. O Tricolor pode e deve perdoar, mostrando altivez, mas a Justiça Desportiva, ao contrário, pode e deve punir o agressor com todo o rigor.

Um nariz quase quebrado e a saída precoce da partida podem ter sido os menores dos problemas do jogador tricolor. A violência da entrada poderia ter causado consequências mais graves, como já ocorreu em outras oportunidades no futebol, quando jogadores, vítimas de agressões de colegas de profissão, tiveram sérias fraturas e até lesões cerebrais.

Mas o que legitima a violência desportiva? – tratada aqui apenas no âmbito do futebol, mas que pode ocorrer em qualquer esporte coletivo de contato físico – O que a difere, por exemplo, de uma briga de rua comum? Por que a cotovelada desferida por Betinho dentro do campo de jogo não é um crime, enquanto a mesma cotovelada, se perpetrada fora do campo o seria?

A violência que ocorre no âmbito esportivo é legitimada pelo Direito, ou seja, decorre de uma ficção jurídica que se denomina exercício regular do direito. O atleta, desde que preenchidas certas condições, pode praticar a violência contra o seu companheiro, sem que isso configure crime de lesão corporal. Para tanto, a agressão deve ocorrer dentro dos limites do esporte ou de seus desdobramentos previsíveis, o ofendido deve estar ciente dos riscos inerentes da disputa desportiva, a prática esportiva deve estar regulamentada em lei e a atividade não pode ser contrária aos bons costumes.

É por isso, também, por exemplo, que o boxeador que nocauteia o seu adversário não pratica crime algum, pois os socos que desfere estão legitimados em razão das regras do desporto.

Ocorre, contudo, que a violência desportiva abarcada pelo exercício regular do direito tem limites e o seu excesso poder caracterizar a prática de crime comum. A questão que se põe é como caracterizar o excesso em casos mais graves, como o que, por exemplo, vitimou o atleta tricolor.

Evidentemente, aferir o dolo do autor da agressão – dolo: consciência e vontade de praticar a lesão – é tarefa que encontra óbice na subjetividade. Não se deve olvidar, no entanto, que a tecnologia atual de mil câmeras nos estádios facilita sobremaneira a percepção da conduta do atleta que pratica a agressão. Um soco, uma cotovelada, um pontapé podem caracterizar, eventualmente, esse dolo.

Vale lembrar que a violência é inerente ao futebol. O que se deve coibir é a violência que extrapola, que excede, que visa tão somente a lesionar o adversário. Nesse caso, a agressão não estaria legitimada e poderia, dependendo das circunstâncias, constituir verdadeira infração penal punida pelo Poder Judiciário, mesmo quando cometida dentro do campo de jogo.

Não se trata aqui, vale ressaltar, da entrada imprudente do atleta que almeja tirar a bola de seu adversário, ou da falta grave para evitar um contra-ataque ou um gol. Embora nessas situações possa haver lesões sérias, o que se pretendeu foi agir de acordo com as regras do jogo (a falta é seu elemento) e nunca violar a integridade física do companheiro de profissão. Nesses casos, a imprudência ou mesmo a falta violentíssima, em que pese esta ser reprovável, são inerentes ao esporte e devem ser punidas no âmbito desportivo.

O excesso de que trato não é o excesso na gravidade da falta, mas na intenção de quem a pratica. Se a intenção é unicamente a de agredir, pode-se pensar em crime. Se a intenção é agir, mesmo com o recurso da violência decorrente da infração de jogo, no exercício do direito de praticar o esporte, não há que se falar em crime, independentemente da gravidade da lesão eventualmente sofrida.

Depois de passado o susto, talvez muitos possam dizer que a lesão sofrida por Edson tenha sido algo absolutamente natural, inerente ao futebol, “ossos do ofício”. Mas e se não fosse? E se o atleta estivesse hoje numa cadeira de rodas, ou com grave lesão cerebral? O que fazer? A expulsão e alguns jogos afastado seria a punição adequada ao agressor?

Quando Betinho subiu naquela bola, agiu unicamente para agredir o adversário e, portanto, a sua conduta extrapolou os limites da violência desportiva autorizada. Edinho devia estar “entorpecido” por algum “alucinógeno” quando afirmou que “esta é a técnica correta para subir e se proteger”.

Assim, constatado o dolo de agredir, o excesso irrazoável na violência desportiva, o atleta agressor deveria ser punido como o autor de um crime de lesão corporal. É preciso deixar de lado o costume de só se irresignar com as atitudes quando as consequências são graves ou chocam. Esperar o pior acontecer para que drásticas atitudes sejam tomadas não evitará que o pior ocorra. É preciso coibir e é preciso prevenir.

Também não se pode banalizar a agressão, transformando-a em crime, sob pena de se desvirtuar o espírito do futebol, que é baseado no contato físico. Somente o caso concreto poderá dizer se o atleta realmente extrapolou da violência desportiva para agredir com animus de lesionar o companheiro de profissão e, nesse caso, a sua conduta deverá ser apreciada pela Justiça Comum.

Da mesma forma, como já se viu amiúde, praticas racistas, injurias raciais entre jogadores, mesmo perpetradas dentro de campo de jogo, foram levadas às delegacias policiais, o que abre precedentes para que outras condutas criminosas também sejam tratadas da mesma forma.

Edson fraturou o nariz, mas amanhã João poderá sofrer uma grave lesão cerebral e ficar o resto de sua vida incapacitado. As autoridades desportivas e públicas devem estar atentas para que o direito de exercer a profissão esportiva não sirva de salvaguarda para a prática de crimes que podem ter consequências gravíssimas.


O esporte é saudável enquanto praticado com respeito às regras e à integridade física e moral dos seus participantes. Tudo o que extrapola a violência permitida, ou seja, o seu excesso odioso, que é a violência física ou moral dolosas, deve ser tratado fora do âmbito desportivo e lá apurado e rigorosamente punido.

Imagem: Globoesporte.com

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Tudo pode mudar em 90 minutos

Na vitória tricolor sobre o Payssandu pela Copa do Brasil, três jogadores foram protagonistas: o atacante Magno Alves, o lateral direito Renato e o goleiro Júlio César. Os dois primeiros foram os autores dos gols do Fluminense e o goleiro, um dos maiores responsáveis por garantir o resultado com ótimas defesas.

Não haveria nada de especial nisso se esses três jogadores não fossem um veterano artilheiro que, aos 39 anos de idade e de volta ao clube que o projetou, ainda não havia marcado com a camisa tricolor; um lateral direito que era questionado por parte da torcida – frise-se que lesões que o retiraram do gramado por longo período e o banco de reservas nunca permitiram que mostrasse plenamente seu futebol – e um goleiro que ainda não jogara pelo Flu, mas que chegara ao tricolor sob o estigma de fracassos anteriores, sobretudo quando vestiu a camisa do Botafogo, antes de ser vendido para a Europa.

Logo depois da partida – e é isso que torna o futebol apaixonante – diversos torcedores se manifestaram sobre a inusitada coincidência de três jogadores criticados, obscuros, da “segunda linha” do elenco tricolor terem sido os principais responsáveis pela importantíssima vitória sobre o clube nortista. Espalharam-se pelas redes sociais hashtags do tipo “#nuncacritiquei” ou “#nuncafaleimal” e ainda apaixonadas manifestações sobre a nova “muralha” tricolor que alguns, mais empolgados, já atribuíam a titularidade no gol do Fluminense.

E o que tem isso? Nada demais.

Ao torcedor é lícito “cornetar”. Somente a ele é dado o direito de ser volúvel em suas opiniões, tão volúvel e dinâmico como é o futebol. Não me espantaria se alguns daqueles que disseram que nunca criticaram Magno Alves ou Renato estivessem mentindo. Faz parte. Nem me espanto que, por uma única apresentação, pretendam trocar Cavalieri por Júlio César no gol tricolor.

Também não seria de estranhar que essas mesmas vozes, daqui a um mês, após mais dez partidas em branco do veterano artilheiro, de algumas pixotadas do esforçado Renato e uma ou duas falhas do aclamado estreante, tornem com força total às críticas que uma única partida teve o condão de arrefecer.

Tal qual a cornetagem, o entusiasmo exacerbado também está inserido no espírito do futebol. Sem essas sensações fugazes e eloquentes o esporte perderia a sua graça. Quantos heróis de 90 minutos já não vimos? Jogadores que entraram para a história numa única partida e que depois jamais reeditaram um átimo daquele encanto passageiro...Não nos fizeram felizes, mesmo que por uma única partida?

Por isso, a minha mensagem ao torcedor tricolor é para que não se tolha. Se hoje, por exemplo, você assistiu a uma atuação estupenda do zagueiro Henrique, brade a plenos pulmões: “Henrique é seleção!”. Se amanhã ele falhar bisonhamente, xingue até a quinta geração de sua mãe.

Tê-lo enaltecido ou criticado antes, não lhe retira a legitimidade de criticá-lo ou enaltecê-lo posteriormente.


Esse é um direito seu, inalienável, que ninguém pode turbar. Afinal de contas, assim como na vida, o direito de se arrepender ou mudar de opinião é o que engrandece o debate esportivo. Mude de opinião sempre que achar que deva e não dê bola para os patrulheiros de plantão. Afinal, eles também mudam de opinião, só não admitem isso para você.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Fluminense em desencanto

Não demorará muito para que surjam na mídia especulações sobre a presença de Ronaldinho Gaúcho no Fluminense e o seu desempenho mais recente na competição, quando, num viés de decadência, perdeu quatro dos últimos cinco confrontos; período em que, por coincidência, R10 esteve presente em parte.

Obviamente, será uma comparação despropositada bastante comum quando advém de uma imprensa, cuja sanha por denegrir nossos benfeitos é muito maior do que averiguar as verdadeiras causas que poderiam ter ensejado a recente má-fase tricolor.

Não se olvide que o clube de regatas contratou um tal de Guerrero, que nunca estará à sombra de um R10, mas que precisa veementemente ser a “grande contratação”, o craque do campeonato para o bem das finanças de jornalecos e outras mídias de segunda categoria e da torcida que é seu público.

Assim, portanto, persistindo as más apresentações, o nome de Ronaldinho passará ser questionado.

Não caiamos nessa falácia, porém. R10 é jogador de que não se prescinde. Craque de primeira grandeza que, enquanto estiver sendo profissional dentro de campo e responsável fora dele, será sempre utilíssimo.

O problema do Fluminense é outro. Sem entrar na seara das estratégias e esquemas, posicionamentos de jogadores e outras questões técnicas do esporte, cuja expertise é toda da companheira Crys Bruno, leigo como sou, posso minimamente constatar que o mal que assola o Tricolor é a deficiência no seu comando.

Assim, como Cristóvão e Drubscky, Enderson chegou ao Flu como uma aposta. Um treinador sem respaldo curricular que o credenciasse a dirigir um gigante do futebol nacional. Ao contrário, contudo, de seus antecessores, Enderson foi mais efetivo e incisivo para minorar problemas pontuais, como a crônica questão da defesa. Além disso, deu ao Flu uma formação mais coletiva e solidária que se destacou em algumas partidas mais pela garra e determinação do que por qualquer esquema tático propriamente dito.

Ocorre que esse sopro de ousadia, em regra, se dá dentro de nossos domínios, com a torcida como testemunha presencial e onde seria impensável atuar sem o constante desejo de vencer. Nessas oportunidades, o Flu é volúpia pura. Insinuante, marca avançado e pressiona com força até desmantelar em algum momento a defesa adversária.

Mas Enderson parece ser daqueles treinadores, tão comuns no futebol nacional, que preferem a garantia do emprego – e para tanto o empate fora de casa é sempre bom resultado -, à imposição de seu pensamento de jogo de forma uniforme, independentemente do adversário ou do local da partida.

E assim é, porque reiteradamente o Fluminense se apresenta fora de seus domínios como um visitante cheio de cerimônia, que pede licença para chegar à área adversária e se contenta em disputar o jogo com o firme propósito de apenas não ser derrotado.

Por mais de uma vez, esse respeito absoluto – que se pode traduzir numa covardia despropositada de um treinador que planeja apenas não perder – nos tirou pontos importantes na competição, sendo responsável direto pelos mais recentes malogros do Flu.

Não adianta o treinador justificar as derrotas alegando simploriamente que o time jogou mal. É claro que jogou mal, mas jogou mal por quê? Uma equipe escalada para defender, pelas características de seus jogadores, jamais será capaz de ser ofensiva. É instintivo. Escalar um Pierre – apesar da eficiência nas suas funções – é dizer aos demais jogadores e a todos nós que o intuito da equipe é jogar retrancada.

E quem joga apenas por empate, invariavelmente perde.

Se ainda não reparou, tricolor, aproveite as próximas partidas e compare. O Flu do Maracanã com o Flu que joga longe de casa. Basta observar o posicionamento no momento da marcação, os avanços ou não dos laterais, o comedimento ou a ousadia. Ficará claro para você que talvez ainda não tenha percebido isso, que o Flu é um time bipolar, tão bipolar quanto seu treinador.

É claro que desfalques como o de Vinícius e Giovanni – jogador que atuava com correção, dentro de suas limitações – fazem falta. Mas não é por suas ausências que o Flu caiu de rendimento, nem perdeu seus últimos jogos por culpa exclusiva da arbitragem. A questão é crônica e é de comando. Com o elenco que tem – que não deve nada a nenhum outro do futebol nacional – não se justificam dois pesos e duas medidas na forma de atuar da equipe.

A covardia do senhor Enderson nos custou pontos importantíssimos e não sei mais quantos custará. Sem exageros, o Fluminense deveria estar lutando pela liderança do campeonato, mas não consegue se firmar entre os quatro primeiros. Alguém poderia dizer que, diante do quadro inicial da temporada, brigar pelo G4 já seria um grande prêmio. Sim, é. Lutar por uma vaga na Libertadores e, se possível, conquistá-la, será um grande galardão, mas se temos a chance de buscar o quinto título nacional, por que não fazê-lo?

O Fluminense disputa competições para vencer. Outras situações que decorram das circunstâncias do campeonato poderão ser interessantes, mas o que se deve perseguir é e sempre será a primeira colocação.

E o que falta para isso? Falta o nosso treinador deixar a covardia de lado, o receio de perder o emprego e fazer o Fluminense jogar como devem jogar os grandes clubes. Apequená-lo diante de adversários combalidos por crises e outros inferiores tecnicamente é reconhecer publicamente a sua incompetência.


Ao senhor Enderson falta ousar mais. Afinal, como já se disse, “ousar lutar, ousar vencer”. E para o Fluminense o que realmente importa é o “vencer ou vencer”. Sempre.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A espanholização e a livre concorrência

Desde 2011, quando a Rede Globo passou a negociar diretamente com os clubes de futebol os valores das cotas de televisão a que fariam jus pelos direitos de transmissão de seus jogos, as receitas pagas a Flamengo e Corinthians passaram a ser substancialmente maiores do que as dos demais clubes brasileiros.

A mandatária de fato do futebol nacional, utilizando o critério simplista e desigual do tamanho das torcidas, passou a concentrar cerca de 20% de toda a receita de transmissão nos cofres dos citados clubes. Enquanto isso, distante do parnaso onde pairam soberanos os protegidos da Vênus Platinada, Fluminense, Botafogo, Atlético/MG, Cruzeiro e Inter, por exemplo, formam o terceiro escalão de receitas, recebendo da empresa televisiva cerca de cinquenta milhões de reais por ano a menos. Outros têm ainda menos importância perante a visão capitalista-selvagem das Organizações Globo.

E o cenário tende a piorar. Para o triênio 2016-2018, Flamengo e Corinthians terão seus contratos reajustados em cinquenta milhões de reais, passando a receber 170 milhões de reais/ano, enquanto o Flu, no terceiro bloco, arrecadrá 60 milhões/ano. São 110 milhões/ano de diferença, valor desproporcional, irrazoável e que não se justificaria se o critério adotado para a distribuição das verbas fosse outro que não a quantidade de torcedores. Dinheiro, diga-se de passagem, que provém dos patrocinadores que anunciam seus produtos na toda poderosa emissora da família Marinho.

Esse abismo financeiro, em alguns anos, tratará de assassinar o futebol como competição, eliminando o espírito desportivo fulcrado na regra da igualdade para privilegiar Flamengo e Vasco, como na Espanha privilegiou-se Barcelona e Real Madrid, ambos já há algum tempo os únicos protagonistas nas competições daquele país europeu.

Se esse é o propósito da Rede Globo, estão no caminho certo. Fulminado o equilíbrio financeiro dos competidores, os dois clubes referidos despontarão solitários como as únicas forças capazes de disputar e ganhar competições dentro e fora do Brasil. Esse aniquilamento gradativo dos demais clubes, sobretudo do terceiro escalão para baixo, matará, também, pouco a pouco, o próprio esporte.

Imagine-se o candidato de um grande partido político que possui vinte minutos de tempo na TV para expor sua plataforma eleitoral. Agora, outro, de um partido-anão, que dispõe de apenas um minuto para explanar plataforma semelhante. A conclusão lógica é de que será eleito o primeiro candidato, com razoável margem de vantagem. Assim será no futebol. O abismo entre os clubes será tão colossal que nem mesmo uma força sobrenatural tornará possível que concorram em igualdades de condições dentro do campo de jogo.

E como se resolve isso?

Contra o capital, a luta é 99% das vezes inglória. A única solução que entendo viável seria – descontando-se a própria revisão de sua decisão pela televisão, o que não deve acontecer -  a intervenção do Estado, através do Ministério Público, em defesa da Constituição da República e com vistas à garantia do direito à livre concorrência.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
Embora a disposição constitucional regule a atividade econômica, não se pode afastar da abrangência da norma a regulação sobre as práticas desenvolvidas pela Rede Globo, que movimenta milhões de reais anualmente, seja recebendo valores a título de patrocínios, seja repassando as cotas para a exclusividade das transmissões televisivas do futebol nacional, das quais só abre mão para empresas menores quando a competição é de somenos importância.

Essa atividade é puramente econômica e impõe reconhecer, também, que os clubes destinatários das cotas televisivas têm a garantia fundamental de competirem em igualdade de condições, ou seja, têm direito à livre concorrência. Isso porque, mesmo não sendo juridicamente empresas, os clubes de futebol hodiernos possuem estruturas empresariais definidas, movimentam verbas milionárias e, mesmo que seus estatutos não prevejam, na prática realizam atividades empresariais como a negociação de planos de adesões de sócios, comercialização de jogadores, contratos de patrocínio, parcerias, o que significa dizer que as instituições, de fato, precisam almejar o lucro para sobreviverem sem a corda no pescoço.

Por conseguinte, a livre concorrência deve ser protegida inclusive no âmbito esportivo. A Constituição da República deve resguardar, assim, toda a atividade social nela prevista, como o esporte, fazendo incidir os princípios da livre concorrência e da igualdade.

A distribuição desigual de cotas – não apenas desigual, mas absurdamente desigual – portanto, diminui a equidade que deve nortear a competição e viola de morte a liberdade de oportunidades dos clubes, aniquilando a concorrência aos dois clubes de maior torcida do futebol brasileiro.

A Globo, com a sua prática, viola os dois princípios. E é em razão disso que o Ministério Público tem o dever de intervir, podendo promover um termo de ajustamento de condutas entre os clubes e a emissora que, no mínimo, almeje diminuir a diferença abissal de valores repassados por critérios inconstitucionais.

Trata-se de um quadro complexo, gravíssimo, e que precisa ser avaliado não somente pelas instituições prejudicadas, mas por toda a sociedade e pelos poderes constituídos, sob pena de que ocorram aqui os nefastos efeitos da polarização, como a que ocorreu na Espanha, por exemplo.

Sem uma intervenção estatal que imponha uma distribuição igualitária das cotas de TV – afinal de contas paga-se pelo direito de transmitir a competição, o que inevitavelmente inclui os clubes participantes, todos, sem exceção – o futebol estará fadado ao fim.

A riqueza dos clubes deve advir de suas receitas com patrocínios, vendas de jogadores, bilheterias, planos de associação etc. As verbas de direito de transmissão, nesse sentido, devem ser distribuídas de forma uniforme entre todos os clubes, não havendo justificativa plausível para que seja realizada de acordo com critérios estipulados de forma arbitrária, em detrimento da livre concorrência, e, por consequência, da igualdade que deve regular as atividades esportivas desenvolvidas pelas entidades, as quais envolvem, também, interesses econômicos protegidos constitucionalmente.

Sempre é bom lembrar que, mesmo que não se pretenda considerar a equidade – que deve ser privilegiada sempre - , outros critérios deveriam ser levados em conta pela emissora para regular a distribuição dessas cotas. Um deles, por exemplo, poderia ser a capacidade econômica do torcedor aferida por pesquisa idônea, uma vez que o que a empresa televisiva persegue é o lucro advindo da exposição de seus patrocinadores na sua transmissão e que seus produtos sejam consumidos pelos telespectadores. Isso porque, nem sempre a maior torcida é a que mais ou melhor consome.

Parece, porém, que não faz parte de seus planos considerar qualquer outra alternativa, seja a divisão igualitária, seja qualquer outra opção que retire de seus protegidos a hegemonia da preferência no recebimento dos direitos de transmissão e reduza a diferença de cotas entre os clubes.


Se nada for feito, e já, a “espanholização” será inexorável. E aí estará morto o futebol brasileiro, ou o que resta dele.

Créditos na imagem.