Ressalto, antes de prosseguir, que não sou
contra as torcidas organizadas. Sou contra os bandidos que nelas se infiltram
para agredir, matar e roubar sob o pálio do anonimato.
Episódios reiterados de violência entre bandidos
infiltrados em torcidas organizadas têm inundado as páginas dos informativos
esportivos e policiais neste início de temporada. Não que o fato seja novidade,
mas da forma como começou o ano, é bem provável que a avalanche de terror e
violência seja a maior dos últimos tempos.
Os grandes clássicos regionais e nacionais sempre
foram excelentes chamarizes para confrontos entre marginais travestidos de
torcedores; atualmente, porém, a brutalidade se aprimorou. Com as facilidades
proporcionadas pelas redes sociais, a ansiedade pelos clássicos terminou. A
sanha sanguinária desses vândalos pode ser satisfeita a qualquer hora, em
qualquer esquina, nos trens ou metrôs, de segunda a sexta-feira,
independentemente de jogo marcado.
Via de regra, a explosão de ódio e intolerância
é direcionada ao torcedor do clube rival, o inimigo em potencial. Mas nem
sempre a vítima está do lado oposto da arquibancada. Já não é de hoje que
torcedores do mesmo clube também se engalfinham. Em alguns casos, como já
ocorreu com membros de organizadas de Flamengo e Vasco, por exemplo, tiveram de
ser separados por cordões de policiais dentro do estádio. Torcedores
organizados do Corínthians brigaram recentemente para garantir quem colocaria a
sua faixa no pequeno espaço reservado na Arena do Palmeiras; os torcedores palmeirenses,
por sua vez, se agrediram fora do estádio; fato idêntico ocorreu com torcedores
do Bahia ano passado. Membros de uma torcida do Flamengo invadiram o vestiário
do Macaé. Pilharam, lesionaram o goleiro da equipe adversária e voltaram
impunemente para as arquibancadas.
A pancadaria atual é contra tudo e contra
todos, não escolhe alvo e nem divisão. Não raro, torcedores de clubes menores
também se digladiam contra seus rivais locais.
E mesmo os torcedores comuns, aqueles que nunca
sonharam integrar uma facção de torcida, comumente têm sido atacados
covardemente apenas por vestirem a camisa de seus clubes. Famílias são alijadas
dos estádios de futebol, porque ir a qualquer um deles ultimamente tem sido uma
atividade de risco. Sabe-se que vai, mas não se sabe se chega ou se volta.
Algumas torcidas organizadas funcionam como
verdadeiras organizações criminosas, em cujas sedes se homiziam criminosos com
vasta folha penal, guardam-se armas de fogo, drogas e outros instrumentos para
prática de violência. Trata-se de um problema social grave que transcendeu as
rixas futebolísticas e, não raro, envolve disputas entre facções criminosas
relacionadas ao tráfico de drogas. E não se deve olvidar que dirigentes
inescrupulosos financiam esses grupos, dando-lhes poder e dinheiro, a fim de
manipulá-los politicamente. Muitos têm livre acesso aos clubes e gratuidade
garantida nos estádios por uma enxurrada de ingressos doados pelos cartolas.
A solução é complexa e não pode ser dada em
parcas linhas. Nem é minha pretensão fazê-lo. No entanto, parece claro que deva
passar necessariamente por ações preventivas desenvolvidas pela inteligência policial
para evitar confrontos previamente agendados – infiltrando agentes,
interceptando mensagens, investigando redes sociais - e por uma ação
repressiva, manejada pelo Judiciário através da decretação ou manutenção da prisão
e da responsabilização penal dos agressores, afastando-se, assim, a impunidade.
Soam casuísticas e oportunistas as propostas levantadas por autoridades que, a cada
morte, a cada violência perpetrada por membros de organizadas, sob a luz dos
holofotes, vêm a público dizer que é preciso criar leis, aumentar penas etc. As
leis existem, as penas também. Falta efetivamente prender e punir.
Lembro-me de que há algum tempo integrantes de
uma organizada tricolor foram presos após agredir e roubar torcedores
vascaínos. Acompanhei o caso e constatei o rigor da Chefe de Polícia, do
Ministério Púbico e do Judiciário. A maioria foi processada por formação de
quadrilha e alguns também por roubo,
estes últimos condenados a penas elevadas. É assim que se deve agir. Contra todos.
Permaneci atento ao noticiário e não tive mais notícias, apesar dos reiterados
episódios de conflitos entre torcidas, de outra atuação conjunta Executivo-Judiciário
tão eficaz.
Torcedores de Atlético-PR e Vasco que
protagonizaram lamentáveis cenas de violência em Joinville, na última rodada do
Brasileiro de 2013, estão soltos. Membros da Gaviões da Fiel que depredaram um
vagão de metrô – patrimônio considerado público – e espancaram quatro
torcedores do São Paulo há poucos dias pagaram fiança e estão na rua. Outros
tantos autores de crimes envolvendo torcidas de clubes de futebol também
continuam impunes. Isso não é problema de falta de Lei é problema da sua má
aplicação. Grupos de torcidas organizadas presos cometendo atos de vandalismo
ou agressões são organizações criminosas e, como tal, devem ser tratados.
Some-se à pena pelo crime de associação criminosa a de roubo ou outro ilícito
praticado, e os seus autores provavelmente receberão uma bela reprimenda penal.
Tratá-los de forma diferenciada, sujeitando-os
às regras processuais de Juizados Criminais – que julgam crimes de menor
potencial ofensivo, diferentemente das Varas Criminais, que processam e julgam
crimes mais graves – somente fomentará nos autores o sentimento da impunidade,
uma vez que sofrerão penas levíssimas, que vão desde o pagamento de cestas
básicas até a proibição de frequentar partidas de seu clube, como se essa
proibição fosse suficiente para impedir que provoquem o caos antes ou depois
dos jogos, ou até mesmo quando não há jogo.
Nem a proibição da torcida, ou mesmo seu
banimento, são medidas suficientes para impedir atos criminosos de seus
integrantes. Afinal de contas, o vândalo age independentemente de estar
uniformizado, e a torcida, como já se viu, muda de nome e volta faceira às
arquibancadas.
A certeza da impunidade talvez não seja a causa
desse grave problema, mas por certo é um dos motivos pelos quais a violência é
reiteradamente praticada. Se o agressor sabe que não será punido, ou terá sua
reprimenda abrandada ou substituída por “cestas básicas”, ele se sentirá
motivado a tornar a delinquir. O eminente jurista Nelson Hungria ensinava que:
“ao analisarmos as causas de todos os
crimes, veremos que elas estão não na quantidade das penas, mas na impunidade
deles.”. Para ele não se combatia a criminalidade aumentando as penas, mas
punindo o fato criminoso de acordo com o ordenamento vigente. A impunidade
provoca no âmago do criminoso o sentimento de que a sua conduta é de somenos
importância para o Estado, e, portanto, que poderá reiterá-la porque nenhuma
sanção eficaz sofrerá. Um dos delitos mais graves do Código Penal, por exemplo,
é o latrocínio – matar para roubar -, mas nem por isso é menos praticado. O
bandido não tem medo da pena abstrata prevista no código – aquela gravada no
texto frio da Lei -, tem medo é de ser preso e ter que efetivamente cumpri-la.
Assim, o “prender” e o “punir” ainda são os
meios mais efetivos na luta contra a impunidade.
Infelizmente, entretanto, nem sempre é assim
que funciona. Pode parecer contraditório, mas direitos e garantias
fundamentais, recursos processuais e benefícios legais, que existem para
proteger o réu inocente de um processo injusto – “mais vale um criminoso absolvido do que um inocente condenado” –
são fórmulas eficazes, nas mãos de bons advogados, para impedir a
responsabilização penal dos transgressores da lei e da ordem.
E de antemão alerto que limitar benefícios e
garantias fundamentais encontra óbice na própria Constituição Federal. Até
mesmo o crime considerado hediondo, cuja gravidade justifica um certo limite à
concessão de benefícios, já teve o seu rigor relativizado para admitir
liberdade provisória, progressão mais benéfica de regime prisional e até mesmo
substituição da pena de prisão por prestação de serviço comunitário, como no
caso do tráfico de drogas.
Parece que estamos num beco sem saída, onde o
melhor caminho ainda é a aplicação irrestrita da lei, mesmo sendo esta
suscetível de variada interpretação e subterfúgios processuais que, por vezes,
darão ao criminoso a oportunidade de escapar à responsabilização penal. Não se
pode, contudo, dela abdicar, pois aí sim o autor do fato criminoso receberá
verdadeiro salvo-conduto para continuar a perpetrar delitos.
Enquanto as autoridades discutem o que fazer, a
violência explode em níveis alarmantes, vitimizando torcedores de bem. O
torcedor é compulsoriamente alijado do seu maior prazer para a garantia de sua
integridade física e até mesmo de sua vida e a de sua família. Já temos
estádios com torcida única. Em breve, os jogos serão disputados sem torcida
alguma.
Péssimo para todos nós que vivenciaram um dia a
magnitude de um estádio lotado em dias de clássico, sem cordões de isolamento
ou policiais que separassem as torcidas. Uma época em que a “violência” era a
galhofa ao rival e vencedores e perdedores sempre saíam ganhando com as boas
recordações do espetáculo.
Se nada for feito para impedir a ação desses
baderneiros, o futebol estará condenado a um triste fim, transformando-se em
mera atração televisiva, se tanto, sem o calor e a paixão do torcedor de bem,
aquele que, verdadeiramente, faz do jogo um espetáculo.
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