segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Impunidade e violência das torcidas organizadas

Ressalto, antes de prosseguir, que não sou contra as torcidas organizadas. Sou contra os bandidos que nelas se infiltram para agredir, matar e roubar sob o pálio do anonimato.

Episódios reiterados de violência entre bandidos infiltrados em torcidas organizadas têm inundado as páginas dos informativos esportivos e policiais neste início de temporada. Não que o fato seja novidade, mas da forma como começou o ano, é bem provável que a avalanche de terror e violência seja a maior dos últimos tempos.

Os grandes clássicos regionais e nacionais sempre foram excelentes chamarizes para confrontos entre marginais travestidos de torcedores; atualmente, porém, a brutalidade se aprimorou. Com as facilidades proporcionadas pelas redes sociais, a ansiedade pelos clássicos terminou. A sanha sanguinária desses vândalos pode ser satisfeita a qualquer hora, em qualquer esquina, nos trens ou metrôs, de segunda a sexta-feira, independentemente de jogo marcado.  

Via de regra, a explosão de ódio e intolerância é direcionada ao torcedor do clube rival, o inimigo em potencial. Mas nem sempre a vítima está do lado oposto da arquibancada. Já não é de hoje que torcedores do mesmo clube também se engalfinham. Em alguns casos, como já ocorreu com membros de organizadas de Flamengo e Vasco, por exemplo, tiveram de ser separados por cordões de policiais dentro do estádio. Torcedores organizados do Corínthians brigaram recentemente para garantir quem colocaria a sua faixa no pequeno espaço reservado na Arena do Palmeiras; os torcedores palmeirenses, por sua vez, se agrediram fora do estádio; fato idêntico ocorreu com torcedores do Bahia ano passado. Membros de uma torcida do Flamengo invadiram o vestiário do Macaé. Pilharam, lesionaram o goleiro da equipe adversária e voltaram impunemente para as arquibancadas.

A pancadaria atual é contra tudo e contra todos, não escolhe alvo e nem divisão. Não raro, torcedores de clubes menores também se digladiam contra seus rivais locais.

E mesmo os torcedores comuns, aqueles que nunca sonharam integrar uma facção de torcida, comumente têm sido atacados covardemente apenas por vestirem a camisa de seus clubes. Famílias são alijadas dos estádios de futebol, porque ir a qualquer um deles ultimamente tem sido uma atividade de risco. Sabe-se que vai, mas não se sabe se chega ou se volta.

Algumas torcidas organizadas funcionam como verdadeiras organizações criminosas, em cujas sedes se homiziam criminosos com vasta folha penal, guardam-se armas de fogo, drogas e outros instrumentos para prática de violência. Trata-se de um problema social grave que transcendeu as rixas futebolísticas e, não raro, envolve disputas entre facções criminosas relacionadas ao tráfico de drogas. E não se deve olvidar que dirigentes inescrupulosos financiam esses grupos, dando-lhes poder e dinheiro, a fim de manipulá-los politicamente. Muitos têm livre acesso aos clubes e gratuidade garantida nos estádios por uma enxurrada de ingressos doados pelos cartolas.

A solução é complexa e não pode ser dada em parcas linhas. Nem é minha pretensão fazê-lo. No entanto, parece claro que deva passar necessariamente por ações preventivas desenvolvidas pela inteligência policial para evitar confrontos previamente agendados – infiltrando agentes, interceptando mensagens, investigando redes sociais - e por uma ação repressiva, manejada pelo Judiciário através da decretação ou manutenção da prisão e da responsabilização penal dos agressores, afastando-se, assim, a impunidade. Soam casuísticas e oportunistas as propostas levantadas por autoridades que, a cada morte, a cada violência perpetrada por membros de organizadas, sob a luz dos holofotes, vêm a público dizer que é preciso criar leis, aumentar penas etc. As leis existem, as penas também. Falta efetivamente prender e punir.

Lembro-me de que há algum tempo integrantes de uma organizada tricolor foram presos após agredir e roubar torcedores vascaínos. Acompanhei o caso e constatei o rigor da Chefe de Polícia, do Ministério Púbico e do Judiciário. A maioria foi processada por formação de quadrilha e  alguns também por roubo, estes últimos condenados a penas elevadas. É assim que se deve agir. Contra todos. Permaneci atento ao noticiário e não tive mais notícias, apesar dos reiterados episódios de conflitos entre torcidas, de outra atuação conjunta Executivo-Judiciário tão eficaz.

Torcedores de Atlético-PR e Vasco que protagonizaram lamentáveis cenas de violência em Joinville, na última rodada do Brasileiro de 2013, estão soltos. Membros da Gaviões da Fiel que depredaram um vagão de metrô – patrimônio considerado público – e espancaram quatro torcedores do São Paulo há poucos dias pagaram fiança e estão na rua. Outros tantos autores de crimes envolvendo torcidas de clubes de futebol também continuam impunes. Isso não é problema de falta de Lei é problema da sua má aplicação. Grupos de torcidas organizadas presos cometendo atos de vandalismo ou agressões são organizações criminosas e, como tal, devem ser tratados. Some-se à pena pelo crime de associação criminosa a de roubo ou outro ilícito praticado, e os seus autores provavelmente receberão uma bela reprimenda penal.

Tratá-los de forma diferenciada, sujeitando-os às regras processuais de Juizados Criminais – que julgam crimes de menor potencial ofensivo, diferentemente das Varas Criminais, que processam e julgam crimes mais graves – somente fomentará nos autores o sentimento da impunidade, uma vez que sofrerão penas levíssimas, que vão desde o pagamento de cestas básicas até a proibição de frequentar partidas de seu clube, como se essa proibição fosse suficiente para impedir que provoquem o caos antes ou depois dos jogos, ou até mesmo quando não há jogo.

Nem a proibição da torcida, ou mesmo seu banimento, são medidas suficientes para impedir atos criminosos de seus integrantes. Afinal de contas, o vândalo age independentemente de estar uniformizado, e a torcida, como já se viu, muda de nome e volta faceira às arquibancadas.

A certeza da impunidade talvez não seja a causa desse grave problema, mas por certo é um dos motivos pelos quais a violência é reiteradamente praticada. Se o agressor sabe que não será punido, ou terá sua reprimenda abrandada ou substituída por “cestas básicas”, ele se sentirá motivado a tornar a delinquir. O eminente jurista Nelson Hungria ensinava que: “ao analisarmos as causas de todos os crimes, veremos que elas estão não na quantidade das penas, mas na impunidade deles.”. Para ele não se combatia a criminalidade aumentando as penas, mas punindo o fato criminoso de acordo com o ordenamento vigente. A impunidade provoca no âmago do criminoso o sentimento de que a sua conduta é de somenos importância para o Estado, e, portanto, que poderá reiterá-la porque nenhuma sanção eficaz sofrerá. Um dos delitos mais graves do Código Penal, por exemplo, é o latrocínio – matar para roubar -, mas nem por isso é menos praticado. O bandido não tem medo da pena abstrata prevista no código – aquela gravada no texto frio da Lei -, tem medo é de ser preso e ter que efetivamente cumpri-la.

Assim, o “prender” e o “punir” ainda são os meios mais efetivos na luta contra a impunidade.

Infelizmente, entretanto, nem sempre é assim que funciona. Pode parecer contraditório, mas direitos e garantias fundamentais, recursos processuais e benefícios legais, que existem para proteger o réu inocente de um processo injusto – “mais vale um criminoso absolvido do que um inocente condenado” – são fórmulas eficazes, nas mãos de bons advogados, para impedir a responsabilização penal dos transgressores da lei e da ordem.

E de antemão alerto que limitar benefícios e garantias fundamentais encontra óbice na própria Constituição Federal. Até mesmo o crime considerado hediondo, cuja gravidade justifica um certo limite à concessão de benefícios, já teve o seu rigor relativizado para admitir liberdade provisória, progressão mais benéfica de regime prisional e até mesmo substituição da pena de prisão por prestação de serviço comunitário, como no caso do tráfico de drogas.

Parece que estamos num beco sem saída, onde o melhor caminho ainda é a aplicação irrestrita da lei, mesmo sendo esta suscetível de variada interpretação e subterfúgios processuais que, por vezes, darão ao criminoso a oportunidade de escapar à responsabilização penal. Não se pode, contudo, dela abdicar, pois aí sim o autor do fato criminoso receberá verdadeiro salvo-conduto para continuar a perpetrar delitos.

Enquanto as autoridades discutem o que fazer, a violência explode em níveis alarmantes, vitimizando torcedores de bem. O torcedor é compulsoriamente alijado do seu maior prazer para a garantia de sua integridade física e até mesmo de sua vida e a de sua família. Já temos estádios com torcida única. Em breve, os jogos serão disputados sem torcida alguma.

Péssimo para todos nós que vivenciaram um dia a magnitude de um estádio lotado em dias de clássico, sem cordões de isolamento ou policiais que separassem as torcidas. Uma época em que a “violência” era a galhofa ao rival e vencedores e perdedores sempre saíam ganhando com as boas recordações do espetáculo.


Se nada for feito para impedir a ação desses baderneiros, o futebol estará condenado a um triste fim, transformando-se em mera atração televisiva, se tanto, sem o calor e a paixão do torcedor de bem, aquele que, verdadeiramente, faz do jogo um espetáculo.

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