quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Quando o direito de imagem tem natureza de salário

Um amigo tricolor, há poucos dias, me fez a seguinte pergunta: como ficaria a situação dos jogadores do Fluminense em relação ao clube se a Unimed continuar atrasando os seus direitos de imagem?

Esta é, por certo, a maior preocupação do torcedor tricolor, que espera que os problemas contratuais da Unimed com os jogadores do Fluminense, como Conca – já de saída -, Fred, Wagner, dentre outros, não repercuta na relação contratual destes com o clube. É também a preocupação de toda a sorte de torcedores adversários e de parte da imprensa, que anseiam por um desmanche profundo no elenco tricolor.

Respondi, de chofre, que a possibilidade de os jogadores acionarem judicialmente o Fluminense para alcançarem as suas liberações em decorrência dos atrasos de salários – três meses de salários atrasados automaticamente determinam o fim do vínculo jogador-clube devedor – era remota. Isso, porque a relação contratual dos jogadores com a Unimed é de natureza civil, distinta da relação trabalhista que têm com o clube e que os reiterados atrasos poderiam ser cobrados na esfera cível da empresa de planos de saúde sem que isso interferisse na relação trabalhista dos jogadores com o clube. Portanto, o Fluminense estaria resguardado de eventual debandada de parte de seu elenco em virtude do não pagamento dos direitos de imagem por parte da antiga patrocinadora.

Claro que, para nós, tricolores, a melhor solução para o caso seria esta e ela não deixa de ser, em tese, uma saída viável e legal. Ocorre, porém, que o Direito não é uma ciência exata e, intrigado com a pergunta, resolvi investigar um pouco mais sobre o tema.

Assim, em breves linhas, tentarei sintetizar a questão, sobretudo quanto ao que particularmente nos interessa – relação Unimed-jogadores do Fluminense-direito de imagem. O assunto demanda um estudo mais aprofundado, o que inviabilizaria a sua publicação virtual; mas, de tudo o que li sobre a matéria, procurei trasladar para este texto apenas o essencial, de modo a dar ao leitor uma impressão, ainda que resumida, das decisões judiciais mais recentes acerca do tema.

Importante, por primeiro, iniciar este breve estudo pelo conceito de direito de imagem. Segundo a doutrina, o direito de imagem é um direito personalíssimo e negociado diretamente entre o jogador (ou a empresa que o detém) com a entidade desportiva (clube de futebol), por meio de valores e regras livremente estipulados entre as partes, assegurado pelo art. 5º, XXVIII, “a”, da Constituição Federal. No âmbito infraconstitucional, está previsto no artigo 87-A, da Lei Pelé (Lei 9615/98).[1]

O próprio dispositivo legal assevera que o direito de imagem não se confunde com o contrato de trabalho desportivo, ou seja, não tem a natureza de salário. Se parássemos por aí, ótimo. A lei, em seu estrito sentido, determina que são contratos distintos. Um tem a natureza cível, o outro, trabalhista e cada um deve ser pleiteado na sua seara. A discussão, entretanto, deve prosseguir.

Clubes de futebol, visando à sonegação de impostos e outros direitos previdenciários e trabalhistas, passaram a utilizar o direito de imagem como forma de dissimular a verdadeira remuneração devida ao atleta em razão de sua contratação. Assim, estabelecem com o contratado um valor remuneratório subdivido em salário na CTPS e direito de imagem. Este último, contrato cível, livre dos encargos acima referidos, passa a ser a maior, por vezes quase a totalidade da remuneração do jogador, enquanto sobre a mínima parcela referente ao salário anotado na carteira de trabalho incidem, proporcionalmente, as despesas trabalhistas e previdenciárias. Essa situação anômala e fraudulenta foi levada aos Tribunais pelos jogadores de futebol, ante o indisfarçável propósito de o clube mascarar o pagamento de salário com o nome direito de imagem. O falseamento passou, então, a ser severamente combatido.

Os Juízes do Trabalho (1ª. instância), os Tribunais Regionais do Trabalho (órgãos recursais de 2ª. Instância) e até o Tribunal Superior do Trabalho[2] (órgão máximo da Justiça Trabalhista) abandonaram o entendimento de que o contrato de direito de imagem firmado entre os clubes de futebol  e os atletas eram distintos e firmaram a convicção de que o contrato de direito de cessão de direito de imagem pago aos jogadores de futebol tem natureza de salário, devendo incidir sobre o montante todas os encargos legais. O direito de imagem, assim, passou a integrar o salário do atleta, uma vez que aquele possuía o mesmo objeto do contrato de trabalho, ou seja, amalgamados, constituíam a integralidade da remuneração do atleta.

A fim de que não se confundam os institutos, vale aqui abrir um pequeno parêntese sobre a distinção entre direito de imagem e direito de arena. O direito de arena, ao contrário da cessão do direito de imagem, está previsto no art. 42, § 1º, da Lei 9.615/98 (Lei Pelé)[3] e decorre da participação do atleta nos valores obtidos pela entidade esportiva com a venda da transmissão ou retransmissão dos jogos em que ele atua como titular, ou reserva. A titularidade do direito de arena, assim, pertence à entidade desportiva a que está vinculado o atleta e a cessão de uso da imagem a este último, como seu direito personalíssimo.

Esta é a posição majoritária dos Tribunais quanto à relação clube-jogador no que concerne ao contrato de direito de imagem.

A matéria não é tão tranquila, entretanto, quando esse contrato é praticado entre uma empresa que, via de regra investe no clube, e o atleta a ele vinculado. Justamente por ser uma relação pouco usual, são raros os precedentes dos Tribunais sobre o tema.

A questão que interessa diretamente é o vínculo contratual entre a ex-patrocinadora do Fluminense e alguns dos jogadores do elenco, remunerados pela empresa a título de direito de imagem. Para se evitar o reconhecimento, como visto anteriormente na relação clube-jogador, dos valores recebidos a título de direito de imagem como se salários fossem, novo estratagema foi criado. Os atletas beneficiados passaram a criar uma pessoa jurídica para que esta pudesse receber diretamente a verda da cessão de uso da imagem sem que o clube ou mesmo o atleta apareçam diretamente no negócio jurídico.

Em princípio, cuidou-se de manobra com aparência legal. A matéria, porém, foi objeto de questionamento judicial através do recurso ordinário número 0000352-34.2011.5.01.0061 – RO, perante a 6ª. Turma[4] do TRT da 1ª. Região. E as partes: Fluminense F. C. como reclamado e Edcarlos Conceição Santos, o reclamante, que pretendia o reconhecimento dos valores que recebia a título de direito de imagem da Unimed como salário. O acórdão da referida turma julgadora reconheceu a possibilidade genérica do pagamento pelo uso da imagem do atleta, mas, no caso concreto, entendeu que o contrato de direito de imagem entre o jogador Edcarlos e a Unimed era fraudulento, uma vez que visava mascarar a real remuneração do contratado com o intuito de sonegar impostos.

Para se distinguir entre um contrato perfeito, sob a égide do Direito Civil e o contrato fraudulento, criado apenas para dissimular a verdadeira remuneração do atleta, utilizou-se o critério das respostas positivas a três perguntas:

1ª – O atleta realizou campanhas publicitárias veiculando o produto ou a marca?

2ª – O contrato de direito de uso de imagem é autônomo em relação ao contrato de trabalho?

3ª - Os valores recebidos como atleta profissional guardam proporcionalidade com aqueles pagos a título de licença por uso da imagem?

O entendimento do relator, desembargador José Antônio Piton, foi este:

Ao responder às perguntas supra, se extrai do conjunto probatório dos autos que: não há notícia de uma só campanha publicitária ou produto associado à imagem do autor que justifique o pagamento de R$60.000,00 (sessenta mil reais) mensais durante esses dois anos; o contrato “de uso de imagem” é acessório e dependente do contrato de trabalho, na medida em que há cláusula de rompimento automático desse pacto na hipótese de resilição da relação de emprego; os valores pagos pelo clube – R$25.000,00 (vinte e cinco mil reais) – e pela patrocinadora – R$60.000,00 (sessenta mil reais) – são discrepantes, circunstâncias que aliadas sinalizam a promiscuidade existente entre a entidade esportiva e a patrocinadora. É cristalina a fraude quando a patrocinadora e o clube desportivo entram em conluio para violar direitos trabalhistas e sonegar impostos, ocultando a real remuneração do atleta sob as vestes de “direito de uso de imagem”. Por consequência, esses valores passam a integrar a remuneração do trabalhador para todos os efeitos legais. A ilicitude do contrato de natureza civil pode ser comprovada ante a interdependência com o contrato de trabalho, bem como pela ausência de provas quanto ao uso da imagem do jogador em campanhas publicitárias, sendo irrelevante o fato de o pagamento advir de terceiro ou ser depositado em contra de pessoa jurídica que o empregador compeliu o jogador a constituir para fraudar a lei, prejudicando o próprio trabalhador e terceiros, tais como a Receita Federal e o INSS.

Como se percebe, as três respostas foram respondidas negativamente. Não se teve notícia de qualquer campanha publicitária da empresa Unimed em que o jogador fosse protagonista, ou mesmo tivesse participado de qualquer forma, mesmo com a criação de algum produto associado à sua imagem; os contratos de direito de imagem e de trabalho não são autônomos, pois a resilição deste último enseja o encerramento automático do primeiro e os valores percebidos a título de contrato de trabalho não são proporcionais àqueles recebidos a título de cessão do uso da imagem, estes são sensivelmente maiores, bem maiores.

Este acórdão foi prolatado em 15 de maio de 2013 e constitui precedente importante e perigoso (para o clube), porque pode nortear novas decisões no mesmo sentido. Se jogadores do Fluminense buscarem a via judicial, provavelmente essas mesmas perguntas serão realizadas e as respostas, ao que tudo indica, como no caso Edcarlos, serão negativas. Tal fato, se ocorrer, significará o reconhecimento das verbas de direito de imagem como salários e estes, em atraso, darão ao jogador prejudicado o direito de deixar de competir quando a inadimplência durar dois meses ou mais (artigo 32, da Lei 9615/98 – Lei Pelé) ou mesmo de, automaticamente, ter o contrato rescindido com o clube e a liberdade para contratar com outro, quando os atrasos somarem três meses contínuos (artigo 31, da Lei Pelé).

Conforme dito anteriormente, o Direito não é uma ciência exata. É dinâmico, muda de acordo com as novas situações fáticas que surgem e se pauta na lei, mas também na jurisprudência. Trata-se de precedente único, que não vincula os novos julgadores a decidirem no mesmo sentido, mas indica um caminho a seguir. E se esse caminho for seguido, as chances de jogadores, em virtude de atrasos de contratos de direitos de imagem perpetrados pela Unimed, conseguirem a rescisão de contrato de trabalho com o Fluminense, sem que este tenha direito a qualquer contrapartida, são altas.





[1] Art. 87-A. O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).

[2] "RECURSO DE REVISTA. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. DIREITO DE IMAGEM. INTEGRAÇÃO. DIFERENÇAS SALARIAIS. O direito à imagem, consagrado pelo artigo 5º, inciso XXVIII da Constituição Federal, é a garantia, ao seu titular, de não tê-la exposta em público, ou comercializada, sem seu consenso e ainda, de não ter sua personalidade alterada material ou intelectualmente, causando dano à sua reputação. A doutrina, entendimento o qual comungo, tem atribuído a natureza jurídica de remuneração ao direito de imagem, de forma semelhante às gorjetas nas demais relações empregatícias, que também são pagas por terceiro. (...) A jurisprudência desta Corte, de igual sorte, vem se formando no sentido de que o -direito de imagem- reveste-se, nitidamente, de natureza salarial, reconhecendo, ainda, a fraude perpetrada pelos clubes. Neste sentido, precedentes desta Colenda Corte Superior. Recurso de revista conhecido e provido. (TST - RR: 2007120055040203 200-71.2005.5.04.0203, Relator: Renato de Lacerda Paiva, Data de Julgamento: 18/09/2013, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/09/2013)."
[3] “Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.” (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).“ § 1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil.” (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

[4] CONTRATO DE DIREITO DE USO DE IMAGEM. INTUITO DE FRAUDAR REAL REMUNERAÇÃO. ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. EFEITOS. Em se tratando de direitos de natureza diversa, o salário e o direito de uso de imagem do atleta profissional possuem finalidades distintas: oprimeiro remunera a força de trabalho do jogadorem prol do clube desportivo, ao passo que o segundo se traduz em direito personalíssimo negociado livremente pelo atleta com terceiros, tendo por objetivo vincular à sua imagem ao produto ou marca que pretende promover. No entanto, quando o patrocinador e o clube desportivo entram em conluio para fraudar direitos trabalhistas e sonegar impostos, os valores pagos sob a nomenclatura de “direito de uso de imagem” passam a integrar a remuneração do trabalhador para todos os efeitos legais. A ilicitude do contrato de natureza civil pode ser comprovada ante a interdependência com o contrato de trabalho, bem como pela ausência de provas quanto ao uso da imagem do jogador em campanhas publicitárias, sendo irrelevante o fato de o pagamento advir de terceiro ou ser depositado em conta de pessoa jurídica que o empregador compeliu o jogador a constituir para fraudar a lei, prejudicando o próprio trabalhador e terceiros, tais como a Receita Federal e o INSS.


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