Desde 2011, quando a Rede Globo passou a
negociar diretamente com os clubes de futebol os valores das cotas de televisão
a que fariam jus pelos direitos de transmissão de seus jogos, as receitas pagas
a Flamengo e Corinthians passaram a ser substancialmente maiores do que as dos
demais clubes brasileiros.
A mandatária de fato do futebol nacional,
utilizando o critério simplista e desigual do tamanho das torcidas, passou a
concentrar cerca de 20% de toda a receita de transmissão nos cofres dos citados
clubes. Enquanto isso, distante do parnaso onde pairam soberanos os protegidos
da Vênus Platinada, Fluminense, Botafogo, Atlético/MG, Cruzeiro e Inter, por
exemplo, formam o terceiro escalão de receitas, recebendo da empresa televisiva
cerca de cinquenta milhões de reais por ano a menos. Outros têm ainda menos
importância perante a visão capitalista-selvagem das Organizações Globo.
E o cenário tende a piorar. Para o triênio
2016-2018, Flamengo e Corinthians terão seus contratos reajustados em cinquenta
milhões de reais, passando a receber 170 milhões de reais/ano, enquanto o Flu, no
terceiro bloco, arrecadrá 60 milhões/ano. São 110 milhões/ano de diferença,
valor desproporcional, irrazoável e que não se justificaria se o critério
adotado para a distribuição das verbas fosse outro que não a quantidade de
torcedores. Dinheiro, diga-se de passagem, que provém dos patrocinadores que
anunciam seus produtos na toda poderosa emissora da família Marinho.
Esse abismo financeiro, em alguns anos, tratará
de assassinar o futebol como competição, eliminando o espírito desportivo
fulcrado na regra da igualdade para privilegiar Flamengo e Vasco, como na
Espanha privilegiou-se Barcelona e Real Madrid, ambos já há algum tempo os
únicos protagonistas nas competições daquele país europeu.
Se esse é o propósito da Rede Globo, estão no
caminho certo. Fulminado o equilíbrio financeiro dos competidores, os dois
clubes referidos despontarão solitários como as únicas forças capazes de
disputar e ganhar competições dentro e fora do Brasil. Esse aniquilamento
gradativo dos demais clubes, sobretudo do terceiro escalão para baixo, matará,
também, pouco a pouco, o próprio esporte.
Imagine-se o candidato de um grande partido
político que possui vinte minutos de tempo na TV para expor sua plataforma
eleitoral. Agora, outro, de um partido-anão, que dispõe de apenas um minuto
para explanar plataforma semelhante. A conclusão lógica é de que será eleito o
primeiro candidato, com razoável margem de vantagem. Assim será no futebol. O
abismo entre os clubes será tão colossal que nem mesmo uma força sobrenatural
tornará possível que concorram em igualdades de condições dentro do campo de
jogo.
E como se resolve isso?
Contra o capital, a luta é 99% das vezes
inglória. A única solução que entendo viável seria – descontando-se a própria
revisão de sua decisão pela televisão, o que não deve acontecer - a intervenção do Estado, através do Ministério
Público, em defesa da Constituição da República e com vistas à garantia do
direito à livre concorrência.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a
todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios:
Embora a disposição constitucional regule a
atividade econômica, não se pode afastar da abrangência da norma a regulação
sobre as práticas desenvolvidas pela Rede Globo, que movimenta milhões de reais
anualmente, seja recebendo valores a título de patrocínios, seja repassando as
cotas para a exclusividade das transmissões televisivas do futebol nacional,
das quais só abre mão para empresas menores quando a competição é de somenos
importância.
Essa atividade é puramente econômica e impõe
reconhecer, também, que os clubes destinatários das cotas televisivas têm a
garantia fundamental de competirem em igualdade de condições, ou seja, têm
direito à livre concorrência. Isso porque, mesmo não sendo juridicamente
empresas, os clubes de futebol hodiernos possuem estruturas empresariais
definidas, movimentam verbas milionárias e, mesmo que seus estatutos não
prevejam, na prática realizam atividades empresariais como a negociação de
planos de adesões de sócios, comercialização de jogadores, contratos de
patrocínio, parcerias, o que significa dizer que as instituições, de fato,
precisam almejar o lucro para sobreviverem sem a corda no pescoço.
Por conseguinte, a livre concorrência deve ser
protegida inclusive no âmbito esportivo. A Constituição da República deve
resguardar, assim, toda a atividade social nela prevista, como o esporte, fazendo
incidir os princípios da livre concorrência e da igualdade.
A distribuição desigual de cotas – não apenas
desigual, mas absurdamente desigual – portanto, diminui a equidade que deve
nortear a competição e viola de morte a liberdade de oportunidades dos clubes,
aniquilando a concorrência aos dois clubes de maior torcida do futebol
brasileiro.
A Globo, com a sua prática, viola os dois
princípios. E é em razão disso que o Ministério Público tem o dever de
intervir, podendo promover um termo de ajustamento de condutas entre os clubes
e a emissora que, no mínimo, almeje diminuir a diferença abissal de valores
repassados por critérios inconstitucionais.
Trata-se de um quadro complexo, gravíssimo, e
que precisa ser avaliado não somente pelas instituições prejudicadas, mas por
toda a sociedade e pelos poderes constituídos, sob pena de que ocorram aqui os
nefastos efeitos da polarização, como a que ocorreu na Espanha, por exemplo.
Sem uma intervenção estatal que imponha uma
distribuição igualitária das cotas de TV – afinal de contas paga-se pelo
direito de transmitir a competição, o que inevitavelmente inclui os clubes participantes,
todos, sem exceção – o futebol estará fadado ao fim.
A riqueza dos clubes deve advir de suas
receitas com patrocínios, vendas de jogadores, bilheterias, planos de
associação etc. As verbas de direito de transmissão, nesse sentido, devem ser
distribuídas de forma uniforme entre todos os clubes, não havendo justificativa
plausível para que seja realizada de acordo com critérios estipulados de forma
arbitrária, em detrimento da livre concorrência, e, por consequência, da
igualdade que deve regular as atividades esportivas desenvolvidas pelas
entidades, as quais envolvem, também, interesses econômicos protegidos
constitucionalmente.
Sempre é bom lembrar que, mesmo que não se
pretenda considerar a equidade – que deve ser privilegiada sempre - , outros
critérios deveriam ser levados em conta pela emissora para regular a
distribuição dessas cotas. Um deles, por exemplo, poderia ser a capacidade
econômica do torcedor aferida por pesquisa idônea, uma vez que o que a empresa
televisiva persegue é o lucro advindo da exposição de seus patrocinadores na sua
transmissão e que seus produtos sejam consumidos pelos telespectadores. Isso
porque, nem sempre a maior torcida é a que mais ou melhor consome.
Parece, porém, que não faz parte de seus planos
considerar qualquer outra alternativa, seja a divisão igualitária, seja
qualquer outra opção que retire de seus protegidos a hegemonia da preferência
no recebimento dos direitos de transmissão e reduza a diferença de cotas entre
os clubes.
Se nada for feito, e já, a “espanholização”
será inexorável. E aí estará morto o futebol brasileiro, ou o que resta dele.
Créditos na imagem.
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